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Foto do escritorEdgar Powarczuk

O que você está fazendo aqui? Em busca da vocação

Na sala de espera do aeroporto de Brasília, aguardando o voo que me traria de volta a Porto Alegre, ouvi um "chamado". Era uma voz interna, sutil, que sussurrava entre a gritaria dos alto-falantes. Escutei dentro de mim: “O que você está fazendo aqui?”. Eu passava os olhos pelas pessoas agarradas às suas bagagens de mão, como artefatos a serem resguardados de alguém. Olhares vagos, angústias represadas, esperanças ocultas. Uma sala de embarque é um depósito de almas num purgatório existencial de despedidas e reencontros consigo mesmo.

 

Sentado no meio daquela gente eu revisitava memórias dos jovens dias em que cruzei todo Brasil viajando na carona de caminhões e ônibus de linha. Por passatempo, improvisado nas rodoviárias com cheiro de diesel e naftalina, eu inventava personagens para as pessoas em trânsito. Olhares tristes, vontades resignadas, movimentos de esperança, tremores de saudades percorrem os corpos de quem espera. Junto com o volume das bagagens, tudo isso é matéria-prima para meu devaneio.

 

Quando estamos em deslocamento, revivemos esses atavismos dos sapiens caminhadores, catador de esperanças, em busca de novos ventos, como diz a linda canção:

 

Eu não sou daqui, mas você tampouco

De nenhum lugar do todo

E de todos os lados um pouco

O mesmo com as canções, os pássaros, os alfabetos

Se queres que algo morra, mantenha-o imóvel.

 

(Jorge Drexler – Movimento)

 

Na minha mochila vertiam amores num livro de poemas do Fernando Pessoa e um Walkman com fitas cassete do Djavan e Caetano. Um trem para as estrelas, de Cacá Diegues, se lançava na voz de Cazuza. Eu vinha de nenhum lugar em direção a nenhum lugar tampouco. No fundo, eu corria atrás de mim mesmo.

 

O que você está fazendo aqui?”, escutei novamente no mesmo momento em que a turbina de outro avião subiu num rompante e me trouxe de volta à tontura daqueles dias. Aos 50 anos, eu era executivo de uma grande empresa carregando o peso da soma de todas as decisões periféricas que ainda precisavam ser tomadas para manter o processo, para manter a roda girando.

 

A morte abrupta do meu pai jazia como uma pedra no meu peito. Em todos esses anos eu andei com a foto dele numa dobra da minha carteira. O pessoal mais antigo tinha esse costume de lembrar entes queridos. Afinal, não tínhamos celular. Era como ter uma benção, uma foto desgastada para lembrar de alguém especial e ter fé para seguir em frente nos dias mais doloridos. Junto com o cartão de embarque, eu ouvia o chamado e segurava a foto com uma súplica resignada para que meu pai iluminasse o meu caminho.

 

 


Valentim Powarczuk

Valentim Powarczuk 1936 – 1984

 

Valentim Powarczuk, meu pai, enfartou e morreu aos 48 anos. Foi vítima da falência da sua empresa. Eu era muito jovem naquele momento. Alguém me disse no velório: “Agora é tudo contigo, guri”. Acho que assumi a culpa por um tempo. Desde aquele momento passei a ver os negócios como ambientes letais, que podiam matar. 

 

Houve um tempo em que ter uma pequena empresa significava que você não tinha dado certo profissionalmente. O sucesso ainda significava um emprego no Banco do Brasil, num concurso público ou numa grande empresa multinacional. Há 30 e poucos anos não se falava, não havia a palavra “empreendedor” no Brasil. Esse conceito era desconhecido. Uma pequena empresa era uma empresa de fundo de quintal. Na verdade, todo aprendizado sobre negócios antes do Sebrae era abordado sobre a perspectiva das grandes empresas. Rh, marketing, estratégia, diferencial competitivo eram exclusividades das grandes corporações. E era isso que aprendíamos na faculdade e nos MBAs.

 

As pequenas empresas de fundo de quintal não tinham treinamento sobre negócios. Elas tinham um contador, e só.

 

Meu pai tinha o “seu” Almeida. Além da contabilidade, ele orientava contratações, intercedia para empréstimos no banco, sabia dos movimentos em Brasília. Quando o seu Almeida chegava na firma todos aproximavam-se para escutar sobre os assuntos dos negócios. Over night. Ativo circulante. Edital público. Ele era uma autoridade para meu pai e seus funcionários, mecânicos humildes com as unhas pretas de óleo queimado. Na oficina precária, no meio de tratores enormes sujos de graxa e barro, todos cuidavam para o Almeida não sujar suas calças brancas onde ele sempre levava um pente pequeno no bolso de trás.  

 

O Almeida era vaidoso e sabia de tudo, mas calculou mal por anos os impostos devidos ao INSS pela empresa do meu pai. Quando fomos ver, devíamos muito dinheiro e a empresa faliu. O contador sumiu.

 

Acho que esse fantasma do Seu Almeida estava na minha cabeça quando fui trabalhar no Sebrae. Lembro dos longos anos de consultoria para milhares de pequenos negócios, por todo o Brasil, tentando localizar onde estava o problema daquelas empresas. Esses empreendedores precisavam aprender como cuidar melhor de seus próprios negócios dentro da realidade deles, no contexto deles. Lá no fundo, ao fazer esse trabalho eu tentava “curar” negócios para que eles não morressem, como morreu a empresa do meu pai.


Ali por 1990, o Sebrae lançou o programa Brasil Empreendedor com treinamento gratuito e acesso a crédito para as MPEs. Espalhamos estratégias e ferramentas de negócios por todos os rincões do país. O Sebrae fez com que a pequena empresa e seus empreendedores ganhassem dignidade e oportunidade para serem reconhecidos por sua qualidade e competência. Todos empreendedores desse país devemos ao Sebrae por esse trabalho.

 

Nessa experiência extrema eu me dei conta que, na grande maioria das vezes, os maiores problemas não estavam na empresa e seus processos. O principal problema está no empreendedor. Fui percebendo que são suas emoções e traumas pessoais que dirigem o negócio. São as questões inconscientes e do Ego da pessoa que orientam as escolhas do negócio. Esses empreendedores são animais sociais tentando encontrar sentido para si mesmo através do seu empreendimento. O seu trabalho é sua projeção para o mundo.

 

Hoje sei que os negócios podem nos fazer sofrer sim, como fez com o meu próprio pai. Mas, também sei que os empreendimentos que lançamos no mundo são o caminho para realizar sonhos, promover vocações e dar dignidade às nossas vidas.

 

Naquele aeroporto de Brasília eu estava no lugar errado. Fui perceber meu propósito olhando para trás. Acho que não escolhemos propósitos. Eles é que nos escolhem. Depois de tantos anos, eu me dei conta que chegara até ali para manter empreendedores vivos. Para manter meu pai vivo. Essa é minha vocação.

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