Canela - 05/06/22
Voltando pela serra sinuosa, um instante de silêncio pairou entre nós. O som surdo do motor do carro fez nosso olhar fixo no vidro e na chuva, cada um absorto em seu pedaço daquele final de semana. E quantos momentos passaram pela memória, como passavam pela janela o capim úmido e o vale esfumaçado. A mim, ocorrera o café com pizza de pão faltando orégano, a caçada de pinhões com o Enrico (olha a cor desse, pai!), o espinho da araucária no polegar, os dentes arreganhados do Biscuí. Fragmentos revirados na nostalgia desses dias inesquecíveis em Canela com meus filhos e esposa.
Já corria a manhã quando Vivi lembrou que pouca era a lenha. Recém havíamos seguido do café para as bergamotas com chimarrão. Eu não posso com o chimarrão, mas apetecera dessa vez. Ademais, gosto quando a Valentina serve o mate com uma erva menos amarga. É bom pensar que ela faz isso para me agradar.
No caminho até o mercado, eu e Veridiana tivemos uma conversa terna e desapressada. A Veri sabe desacelerar as pessoas, como Oblivion, de Piazzolla. Fomos deslizando no piso das ruas apontando o pica-pau amarelo ("sitio do pica-pau amarelo" lá-rá-lá), os tico-ticos, a casinha no bosque que parecia de fada. O homem velho e sua pequena garota, filha crescida, ela me falando de sua próxima noite em Gramado, sozinha com o namorado.
Então, a chuva aperta. Eu testo sua orientação na estrada.
- E agora, Veri? Pra direita ou pra esquerda?
Essas coisas de “orientação espacial” que minha mãe me fez entender rápido e cedo. Pegar o ônibus sozinho me forçou ainda menino a decorar o caminho de ida para entender como voltar. Em muitas vezes, foi necessário que eu lembrasse o caminho de volta, para não me perder. Eu, que tantas vezes voltei a mim, não preciso mais partir. Eu, que tantas vezes não voltei, não posso mais me perder. Eu não consigo mais me perder. Eu não preciso mais me perder. O meu destino está em mim. Estou muito perto do que sou e de quem amo.
Mas , isso ainda não para a Veridiana. Mostrar o caminho de volta incentiva o perder-se, penso agora como pai.
- Acho que é pra direita!, ela diz sem segurança.
- Não, é para a esquerda. Esse é o caminho, lembra? A estrada para o Caracol?
E rimos juntos. A chuva amansava. Já íamos voltando trazendo o calor da lenha. Nosso olhar se cruzou na soleira da porta. Falar já não precisava.
Em alguns dias, Valentina partiria para a America. Ainda reverberava na nossa cabeça o "não voltar mais" que ela soltara um tempo antes. Estávamos ali prolongando uma despedida, colocando em cada detalhe um registro a mais, na convicção de gravar para sempre. A partida de um filho é uma dádiva ao contrário. Queremos mesmo aquilo que queremos? Falam de novos lugares bonitos, novas experiências, crescimento profissional, enquanto eu imagino as noites dela sozinha, longe do nosso abraço, os seus futuros amores que falam inglês sem entendê-la.
Assim é um pai. Condenado à saudade. Aprendendo a sorver da ausência o amor.
Naquele momento na estrada, de volta para Porto Alegre, meus amores já tagaleravam novamente, distribuindo Pingo D'ouro e Bis.
Desacelerei na curva. Busquei a mão de Vivi. E me senti feliz.
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